UM GRITO DE ALEGRIA, NA PASSAGEM DA MORTE
Importante será dizer, naquela terra, Monte de Novais, havia muitas famílias, importantes com muita certeza, contudo o facto é que, a merecer a sua história contada, nestes pequenos contos, só as que se destacam pela ternura dos factos, ou pelo insólito do acontecimento.
Uma aldeia no cimo de um monte, igual a tantos outros que a circundavam, onde quem queria chegar até lá teria, sem dúvida, de subir as suas ladeiras.
Num conjunto de tradições e princípios em saudáveis costumes, no sentir dos deveres familiares, onde os velhinhos ainda são tratados no seio da família, ou mesmo no seu próprio lar.
Onde criaram os seus filhos e onde, em consciência, desejam, passar o resto dos seus dias, até chegar o momento final, da passagem na terra.
Começa aqui uma história de grande profundidade humana, de cooperação comunitária, numa pequena aldeia com cerca de, duzentos e oitenta residentes.
Uma rua sem nome, uma casinha velhinha, baixinha, com uma única porta, e uma janela, bem pequenina, numa rua sem asfalto ou alcatrão, apenas terra batida, por vezes cheia de buracos, ou de poças de água, quando chovia.
Ali naquela rua, passava o trânsito local, como as carroças que saíam de manhã com os seus proprietários, para trabalhar nas fazendas, onde estes se esforçavam por ganhar o seu pão, e levavam as suas ovelhas, presas às carroças, e que por lá andavam o dia inteiro também a pastar.
Passavam também as ovelhas dos dois rebanhos de uns vizinhos ali da terra, algumas alegravam a sua passagem com alguns chocalhos ou ainda deixando as suas caganitas, enquanto iam aliviando a tripa, no caminho.
Passavam os tractores a caminho para os trabalhos, os carros que levavam e traziam os habitantes da terra, para as vilas ou cidade próximas, para os seus afazeres.
*
A casinha ficava um pouco recuada da linha das restantes, e com uns bons centímetros em rebaixo do nível da estrada. Na frente, havia um pequeno retiro entre a porta e a estrada, e uma nespereira já bem perto da porta, para dar sombra sobre onde se sentava a tia Áurea nas tardes quentes de Verão, e dava mais, porém: os seus frutos bem apreciados e saborosos.
Tinha ainda duas roseiras a alegrar, uma de rosas brancas lindíssimas, antiga, outra de rosas cor-de-rosa, a que chamavam rosas de açafate, que eram grandes, redobradas, de muitas pétalas e cheirosas, que regalavam bem no jardim ou na jarra da mesinha da ‘casa de fora’.
A frente da casinha era muito estreita e a única porta dava acesso directo até ao quintal. O chão da casa no exterior era em tijoleiras, mas já demasiado esboroadas nos sítios onde se mais andava, principalmente onde os homens, com as suas botas grossas, com carda, gastavam a tijoleira, e tornavam todo o piso irregular.
Como os homens só podiam comprar um par de botas por ano, todas as botas eram com a sola forrada a cardas, assim nem esbarravam, nem se gastavam as solas, amiúde as cardas é que eram substituídas.
Muitas vezes mandavam colocar tombas e viras ou biqueiras nas botas, pelo desgaste da parte de cima, mas as solas lá iam aguentando com a protecção das cardas.
Era esse o único calçado que os homens usavam, com ele trabalhavam um ano inteiro, pelas encostas, cavando, ou fazendo todos e quaisquer trabalhos do campo.
Continuando a falar da casinha, era efectivamente a ‘casa de fora’ o compartimento maior, já o quarto era bem menor, onde cabia apenas uma cama de ferro, suficiente para o descanso da noite, e pouco mais que isso.
Seguindo até á cozinha, também pequena, era aqui onde se elevava a chaminé para cozer a comida, e repousava uma pequena mesa, mais dois ou três mochos, seria esse o mobiliário dado por suficiente.
Prosseguindo, saía-se para o quintal, também módico, limitado pelo espaço dos vizinhos, pelos muros de pedra, quase solta, ou paredes altas de pedras toscas e negras, saltando à vista.
*
Foi ali naquela casinha que a tia Áurea teve os seus filhos, que os criou na companhia do seu marido, como grande evidência de que numa pequena casa se podia criar uma grande família.
Depois de tudo feito, filhos criados e casados, os anos passaram. Agora a tia Áurea vivia sozinha, ali na sua casinha, uma mulher que devia ter sido alta, mas já andava curvada há muitos anos, encostada num cajado, e isso já lhe tinha retirado um bom pedaço à sua altura.
Toda vestida de preto - tinha-lhe morrido o marido havia alguns anos - também nunca saia à rua sem ostentar o seu lenço preto, e mesmo com muito calor colocava o seu lenço de uma maneira muito própria, caído sobre a testa, fazia duas dobras para dentro, dos lados, para depois atar por baixo do queixo.
Queixo esse muito pontiagudo, o dito queixo, de “rabeca”, como se dizia, na terra, era um queixo muito saliente, que a boca muito encovada e sem dentes fazia ainda salientar mais.
Era ela mulher de rija têmpera, das que devia ter tido sempre a última palavra em tudo, não se deixava levar com palavrinhas ou acordos, e por isso mesmo uma mulher difícil e conflituosa.
Na luta pelos seus direitos não se deixava levar nem deixava nas mãos dos outros o que pudesse fazer com as suas, e muitas vezes as brigas com os vizinhos acabavam por meter a GNR para a solução de causas, pois ela não se ficava por acordos pacíficos.
Bastavam as águas fluviais ou da chuva surgirem e aí havia um motivo bom para briga, isto porque era natural que a água corresse para o lado mais baixo, que seria a casa dela, mas não queria, pois, e assim, entre brigas e quezílias, resolveu fazer um muro mais alto do que os vizinhos, que ficassem eles com as águas.
Os outros ainda, se pensaram eles fazer um muro em tijolo mais alto, o que os homens construíam, ela destruía - isto até ser vencida pelas multas que teve de pagar.
*
Como vizinhos do lado vivia o tio Manuel Caleiro - isto porque vendia cal - e a sua mulher a tia Arminda, um doce de pessoa, pequenina, maneirinha, de palavras suaves, como suaves eram seus gestos, as suas maneiras. Para a venda, lá atrelava ele o macho, carregava a carroça, colocava a balança, aí desfilava pelas terras vizinhas a fazer o seu comércio.
E havia sempre os tempos especiais para as maiores vendas, tal como o Verão, isso porque todas as pessoas caiavam as casas. Por outro lado a Primavera também era boa porque se vendia a cal virgem para misturar na calda de ‘sulfato azul’ (de cobre), para curar as videiras e árvores, para afugentar as pragas. Depois, também perto do Natal, agora para caiar as casas e as chaminés.
Onde se queimava a lenha, tinha de haver cal de caiar. Sempre que se cozia o pão, tinha de se caiar á volta da boca do forno, e coziam o pão alvo, ou de milho, se no Inverno, pelo menos uma vez por semana, e não havia dia de limpeza em que não se aplicasse cal de caiar.
Conforme a bolsa de cada um, mais do que a necessidade, poderia comprar-se mais ou menos cal, uma simples pedra, poderia dar já para algum tempo, mas poderiam comprar até meia arroba, uma arroba, ou mais, dependendo assim de cada bolso.
Contudo este tio Manuel, não vendia só a cal: quando saía para a venda, levava a carroça carregada de sal, apregoava pelas terras, “caaaaaaldecaiaaaaaaaaar!!!” e consumada a venda total da cal, voltava a apregoar agora “feeerrrroooveeeeelhhhho!!!” e comprava tudo o que lhe quisessem vender.
A doce tia Arminda era a peixeira da terra, era mais conhecida até pela ‘sardinheira’, pois o que se vendia mais eram as sardinhas, o conduto do povo pobre do campo. Era isto o que os seus magros salários davam para comprar, até costumavam dizer, nos dias de Inverno, que se conseguiam trabalhar que “já tinham ganhado para as sardinhas”.
E quem as vendia ali na terra era a tia Arminda, quando alguém lhe perguntava - “ó ti Arminda as sardinhas são boas?” - ela logo respondia, fosse qual fosse a hora, logo nas primeiras horas da manhã – “se são filha!… ainda agora acabei de comer uma, uma maravilha”.
E estas sardinhas comidas em cima de um pedaço de pão caseiro, com umas migas, um magusto, uma tiborna, ou lapardana, caíam que nem ginjas, comida simples, Ribatejana, confeccionada apenas com pão, batata, e hortaliças, iguarias apenas da casa dos pobres.
Contudo as sardinhas podiam ser frescas ou salgadas, assim como as sardas, escorrechadas, era apenas o nome que se dava, às sardinhas e sardas que eram abertas a meio pela espinha, cabeça cortada, e carregadas de sal, para a sua conservação. Depois vendiam-se assim e, normalmente, era mais para cozer, tinham de se pôr antecipadamente de molho para sair o sal, e depois era só cozinhar.
*
Outros vizinhos havia nesta aldeia e, ali pertinho, habitava uma outra família, os Carrapiços: viviam dois irmãos, frente a frente, e que se iam levando de razões, sempre desenvolvidas estas pelas partilhas de bens, e era tão difícil a sua relação que brotou daí um ódio visceral.
Certo dia no meio de uma briga feia, resolveram as questões em luta corpo a corpo, não se sabe bem quem deu mais nem quem levou menos, e como todos sabemos que quem conta um conto, aumenta um ponto, pode ser que aqui também tal tenha acontecido.
Mas fiquem sabendo que os ditos senhores não ficaram por meias medidas - não lutaram com armas, é certo, contudo aconteceu algo que talvez acabasse ali com as suas brigas, não com as suas quezílias, na luta alguém levou a melhor, por ventura até, batendo menos, mas aconteceu…
Deu tamanha dentada na orelha do irmão que lhe arrancou um pedaço de orelha, e assim acabaram a briga: “toma lá!…fica agora marcado para o resto da vida”.
*
Pelo meio destes residentes despontava outra casa, a dos Alves, uns vizinhos muito engraçados, um casal modelo, ainda que com a idade da reforma já bem avançada, eles saíam de casa sempre os dois, e iam até às fazendas para fazer alguns trabalhos do campo.
Quando saíam assim de casa ele colocava uma saca de linhagem dobrada no ombro, uma sachola por cima - a saca daria sempre jeito para dormir a sesta, numa boa sombra, e a sachola sempre necessária, também, ora para cortar uns cardos, sachar as culturas, ou até matar uma cobra incómoda que aparecesse.
A senhora Alves colocava o seu avental de mulher do campo e um lenço colocado na cabeça, mas sem ser atado, com as três pontas caídas, uma rodela por sua vez, para colocar a cesta de vime com o almoço, tapada esta com um pano bonito, lá iam até ás fazendas, e assim passavam os seus dias sempre juntos, como sempre tinha sido, em todos os dias das suas vidas.
Até que chegou o momento: entregaram as suas fazendas para as filhas, e ficaram gozando a vida de reformados, a sua casa ficava ali bem na passagem, num sítio bonito, num cruzamento de ruas, viam tudo e todos para qualquer lado que olhassem, passaram a ficar sentados na sua sala, a ver as pessoas passar, ou na janela, uma vida mais parada mas amorosa.
* * *
Os dias não param, os anos assim vão passando o tio Manuel Caleiro, também já havia morrido, mas ficara a tia Arminda, com a sua calma e doçura, e quando já pouco podia fazer, encontrou uma maneira de se entreter, queria deixar uma recordação quando morresse, para todas as pessoas de quem gostava, e assim fez.
Passou a fazer corações, com trapinhos bonitos, coloridos, que bordava com pontos garridos, e ia oferecendo, a todas as pessoas, vizinhas amigas, filhas de amigas, todas as que mereciam a sua simpatia, esses corações eram oferecidos como recordação da tia Arminda, e serviam para pregar agulhas e alfinetes, na caixa de costura de cada uma das presenteadas.
*
Os Alves lá passavam os seus dias sentados a ver quem ia para cá e para lá, mas tinham os seus rituais: a senhora Alves levantava-se e todos os dias ia buscar o pãozinho fresquinho na padaria que havia na aldeia, que ficava na estrada principal, cá por baixo.
Saía de casa sempre impecavelmente arranjada, penteada com o seu carrapito, sapatos meio tacão, nunca andava de chinelos, talvez com medo de escorregar, descia a ladeira até á padaria, e tornava a subi-la até casa, o que era um pouco mais difícil.
Em casa na janela da sala, ficava o marido esperando, e olhando a ladeira para ver se a via subir, sempre preocupado com receio que lhe pudesse acontecer alguma coisa, só quando a conseguia ver a meio da ladeira ficava descansado.
Um certo dia o senhor Alves adoeceu, já tinha oitenta e tal anos, um problema de saúde grave levou-o a ser hospitalizado
Ele conseguiu melhorar, voltou para casa, conseguiu ficar mais forte do que a esposa, andava de pé, coisa que ela nunca mais conseguiu, e ele até olhar um pouco por ela, na ausência das filhas .
No mesmo cruzamento da casa dos Alves, havia um estabelecimento de província, café e mercearia onde se vendia de tudo, naquelas lojas onde era possível comprar tudo o que é possível de imaginar. O senhor Alves era lá cliente para algumas poucas coisas que as filhas não compravam, e nesse rol comprava lá as lâminas para se barbear, só cortava ele a barba uma vez por semana, isso dava para que só utilizasse a máquina de barbear de duas lâminas de uma só vez, na próxima já não cortava.
Ele com os seus hábitos de poupança ia juntando as máquinas todas, já utilizadas, dentro de um saco, não sabia que caminho lhes dar, mas fazia-lhe muita confusão, ter de as deitar para o lixo, pois só as tinha utilizado uma só vez.
Certo dia precisava de comprar mais lâminas, pegou no saco das utilizadas e foi á mercearia. Quando lá chegou diz para a dona da loja: “ó vizinha, venho ver se quer fazer um negócio comigo, trago aqui as lâminas todas que você me tem vendido, você não me quer ficar com elas novamente, eu vendo-lhas baratas, você pode vende-las de novo também mais baratas, só serviram uma vez, é uma pena deitá-las fora, assim estas todas podiam dar para uma embalagem nova.”
A vizinha explicou calmamente que não podia fazer tal coisa, se não serviam para ele, também já não podiam servir para outra pessoa, mas foi difícil convencê-lo, e ainda lhe disse, “podiam ser boas ainda para alguém que não tenha uma barba tão rija como a minha, e daria para outra embalagem, assim a reforma não chega para fazer a barba”.
A vizinha da loja achou muita graça à sua ideia, quanto tempo é que o senhor Alves teria andado a pensar em fazer aquele negócio, de grande valor, para um homem quase com noventa anos.
Uma aldeia no cimo de um monte, igual a tantos outros que a circundavam, onde quem queria chegar até lá teria, sem dúvida, de subir as suas ladeiras.
Num conjunto de tradições e princípios em saudáveis costumes, no sentir dos deveres familiares, onde os velhinhos ainda são tratados no seio da família, ou mesmo no seu próprio lar.
Onde criaram os seus filhos e onde, em consciência, desejam, passar o resto dos seus dias, até chegar o momento final, da passagem na terra.
Começa aqui uma história de grande profundidade humana, de cooperação comunitária, numa pequena aldeia com cerca de, duzentos e oitenta residentes.
Uma rua sem nome, uma casinha velhinha, baixinha, com uma única porta, e uma janela, bem pequenina, numa rua sem asfalto ou alcatrão, apenas terra batida, por vezes cheia de buracos, ou de poças de água, quando chovia.
Ali naquela rua, passava o trânsito local, como as carroças que saíam de manhã com os seus proprietários, para trabalhar nas fazendas, onde estes se esforçavam por ganhar o seu pão, e levavam as suas ovelhas, presas às carroças, e que por lá andavam o dia inteiro também a pastar.
Passavam também as ovelhas dos dois rebanhos de uns vizinhos ali da terra, algumas alegravam a sua passagem com alguns chocalhos ou ainda deixando as suas caganitas, enquanto iam aliviando a tripa, no caminho.
Passavam os tractores a caminho para os trabalhos, os carros que levavam e traziam os habitantes da terra, para as vilas ou cidade próximas, para os seus afazeres.
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A casinha ficava um pouco recuada da linha das restantes, e com uns bons centímetros em rebaixo do nível da estrada. Na frente, havia um pequeno retiro entre a porta e a estrada, e uma nespereira já bem perto da porta, para dar sombra sobre onde se sentava a tia Áurea nas tardes quentes de Verão, e dava mais, porém: os seus frutos bem apreciados e saborosos.
Tinha ainda duas roseiras a alegrar, uma de rosas brancas lindíssimas, antiga, outra de rosas cor-de-rosa, a que chamavam rosas de açafate, que eram grandes, redobradas, de muitas pétalas e cheirosas, que regalavam bem no jardim ou na jarra da mesinha da ‘casa de fora’.
A frente da casinha era muito estreita e a única porta dava acesso directo até ao quintal. O chão da casa no exterior era em tijoleiras, mas já demasiado esboroadas nos sítios onde se mais andava, principalmente onde os homens, com as suas botas grossas, com carda, gastavam a tijoleira, e tornavam todo o piso irregular.
Como os homens só podiam comprar um par de botas por ano, todas as botas eram com a sola forrada a cardas, assim nem esbarravam, nem se gastavam as solas, amiúde as cardas é que eram substituídas.
Muitas vezes mandavam colocar tombas e viras ou biqueiras nas botas, pelo desgaste da parte de cima, mas as solas lá iam aguentando com a protecção das cardas.
Era esse o único calçado que os homens usavam, com ele trabalhavam um ano inteiro, pelas encostas, cavando, ou fazendo todos e quaisquer trabalhos do campo.
Continuando a falar da casinha, era efectivamente a ‘casa de fora’ o compartimento maior, já o quarto era bem menor, onde cabia apenas uma cama de ferro, suficiente para o descanso da noite, e pouco mais que isso.
Seguindo até á cozinha, também pequena, era aqui onde se elevava a chaminé para cozer a comida, e repousava uma pequena mesa, mais dois ou três mochos, seria esse o mobiliário dado por suficiente.
Prosseguindo, saía-se para o quintal, também módico, limitado pelo espaço dos vizinhos, pelos muros de pedra, quase solta, ou paredes altas de pedras toscas e negras, saltando à vista.
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Foi ali naquela casinha que a tia Áurea teve os seus filhos, que os criou na companhia do seu marido, como grande evidência de que numa pequena casa se podia criar uma grande família.
Depois de tudo feito, filhos criados e casados, os anos passaram. Agora a tia Áurea vivia sozinha, ali na sua casinha, uma mulher que devia ter sido alta, mas já andava curvada há muitos anos, encostada num cajado, e isso já lhe tinha retirado um bom pedaço à sua altura.
Toda vestida de preto - tinha-lhe morrido o marido havia alguns anos - também nunca saia à rua sem ostentar o seu lenço preto, e mesmo com muito calor colocava o seu lenço de uma maneira muito própria, caído sobre a testa, fazia duas dobras para dentro, dos lados, para depois atar por baixo do queixo.
Queixo esse muito pontiagudo, o dito queixo, de “rabeca”, como se dizia, na terra, era um queixo muito saliente, que a boca muito encovada e sem dentes fazia ainda salientar mais.
Era ela mulher de rija têmpera, das que devia ter tido sempre a última palavra em tudo, não se deixava levar com palavrinhas ou acordos, e por isso mesmo uma mulher difícil e conflituosa.
Na luta pelos seus direitos não se deixava levar nem deixava nas mãos dos outros o que pudesse fazer com as suas, e muitas vezes as brigas com os vizinhos acabavam por meter a GNR para a solução de causas, pois ela não se ficava por acordos pacíficos.
Bastavam as águas fluviais ou da chuva surgirem e aí havia um motivo bom para briga, isto porque era natural que a água corresse para o lado mais baixo, que seria a casa dela, mas não queria, pois, e assim, entre brigas e quezílias, resolveu fazer um muro mais alto do que os vizinhos, que ficassem eles com as águas.
Os outros ainda, se pensaram eles fazer um muro em tijolo mais alto, o que os homens construíam, ela destruía - isto até ser vencida pelas multas que teve de pagar.
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Como vizinhos do lado vivia o tio Manuel Caleiro - isto porque vendia cal - e a sua mulher a tia Arminda, um doce de pessoa, pequenina, maneirinha, de palavras suaves, como suaves eram seus gestos, as suas maneiras. Para a venda, lá atrelava ele o macho, carregava a carroça, colocava a balança, aí desfilava pelas terras vizinhas a fazer o seu comércio.
E havia sempre os tempos especiais para as maiores vendas, tal como o Verão, isso porque todas as pessoas caiavam as casas. Por outro lado a Primavera também era boa porque se vendia a cal virgem para misturar na calda de ‘sulfato azul’ (de cobre), para curar as videiras e árvores, para afugentar as pragas. Depois, também perto do Natal, agora para caiar as casas e as chaminés.
Onde se queimava a lenha, tinha de haver cal de caiar. Sempre que se cozia o pão, tinha de se caiar á volta da boca do forno, e coziam o pão alvo, ou de milho, se no Inverno, pelo menos uma vez por semana, e não havia dia de limpeza em que não se aplicasse cal de caiar.
Conforme a bolsa de cada um, mais do que a necessidade, poderia comprar-se mais ou menos cal, uma simples pedra, poderia dar já para algum tempo, mas poderiam comprar até meia arroba, uma arroba, ou mais, dependendo assim de cada bolso.
Contudo este tio Manuel, não vendia só a cal: quando saía para a venda, levava a carroça carregada de sal, apregoava pelas terras, “caaaaaaldecaiaaaaaaaaar!!!” e consumada a venda total da cal, voltava a apregoar agora “feeerrrroooveeeeelhhhho!!!” e comprava tudo o que lhe quisessem vender.
A doce tia Arminda era a peixeira da terra, era mais conhecida até pela ‘sardinheira’, pois o que se vendia mais eram as sardinhas, o conduto do povo pobre do campo. Era isto o que os seus magros salários davam para comprar, até costumavam dizer, nos dias de Inverno, que se conseguiam trabalhar que “já tinham ganhado para as sardinhas”.
E quem as vendia ali na terra era a tia Arminda, quando alguém lhe perguntava - “ó ti Arminda as sardinhas são boas?” - ela logo respondia, fosse qual fosse a hora, logo nas primeiras horas da manhã – “se são filha!… ainda agora acabei de comer uma, uma maravilha”.
E estas sardinhas comidas em cima de um pedaço de pão caseiro, com umas migas, um magusto, uma tiborna, ou lapardana, caíam que nem ginjas, comida simples, Ribatejana, confeccionada apenas com pão, batata, e hortaliças, iguarias apenas da casa dos pobres.
Contudo as sardinhas podiam ser frescas ou salgadas, assim como as sardas, escorrechadas, era apenas o nome que se dava, às sardinhas e sardas que eram abertas a meio pela espinha, cabeça cortada, e carregadas de sal, para a sua conservação. Depois vendiam-se assim e, normalmente, era mais para cozer, tinham de se pôr antecipadamente de molho para sair o sal, e depois era só cozinhar.
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Outros vizinhos havia nesta aldeia e, ali pertinho, habitava uma outra família, os Carrapiços: viviam dois irmãos, frente a frente, e que se iam levando de razões, sempre desenvolvidas estas pelas partilhas de bens, e era tão difícil a sua relação que brotou daí um ódio visceral.
Certo dia no meio de uma briga feia, resolveram as questões em luta corpo a corpo, não se sabe bem quem deu mais nem quem levou menos, e como todos sabemos que quem conta um conto, aumenta um ponto, pode ser que aqui também tal tenha acontecido.
Mas fiquem sabendo que os ditos senhores não ficaram por meias medidas - não lutaram com armas, é certo, contudo aconteceu algo que talvez acabasse ali com as suas brigas, não com as suas quezílias, na luta alguém levou a melhor, por ventura até, batendo menos, mas aconteceu…
Deu tamanha dentada na orelha do irmão que lhe arrancou um pedaço de orelha, e assim acabaram a briga: “toma lá!…fica agora marcado para o resto da vida”.
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Pelo meio destes residentes despontava outra casa, a dos Alves, uns vizinhos muito engraçados, um casal modelo, ainda que com a idade da reforma já bem avançada, eles saíam de casa sempre os dois, e iam até às fazendas para fazer alguns trabalhos do campo.
Quando saíam assim de casa ele colocava uma saca de linhagem dobrada no ombro, uma sachola por cima - a saca daria sempre jeito para dormir a sesta, numa boa sombra, e a sachola sempre necessária, também, ora para cortar uns cardos, sachar as culturas, ou até matar uma cobra incómoda que aparecesse.
A senhora Alves colocava o seu avental de mulher do campo e um lenço colocado na cabeça, mas sem ser atado, com as três pontas caídas, uma rodela por sua vez, para colocar a cesta de vime com o almoço, tapada esta com um pano bonito, lá iam até ás fazendas, e assim passavam os seus dias sempre juntos, como sempre tinha sido, em todos os dias das suas vidas.
Até que chegou o momento: entregaram as suas fazendas para as filhas, e ficaram gozando a vida de reformados, a sua casa ficava ali bem na passagem, num sítio bonito, num cruzamento de ruas, viam tudo e todos para qualquer lado que olhassem, passaram a ficar sentados na sua sala, a ver as pessoas passar, ou na janela, uma vida mais parada mas amorosa.
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Os dias não param, os anos assim vão passando o tio Manuel Caleiro, também já havia morrido, mas ficara a tia Arminda, com a sua calma e doçura, e quando já pouco podia fazer, encontrou uma maneira de se entreter, queria deixar uma recordação quando morresse, para todas as pessoas de quem gostava, e assim fez.
Passou a fazer corações, com trapinhos bonitos, coloridos, que bordava com pontos garridos, e ia oferecendo, a todas as pessoas, vizinhas amigas, filhas de amigas, todas as que mereciam a sua simpatia, esses corações eram oferecidos como recordação da tia Arminda, e serviam para pregar agulhas e alfinetes, na caixa de costura de cada uma das presenteadas.
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Os Alves lá passavam os seus dias sentados a ver quem ia para cá e para lá, mas tinham os seus rituais: a senhora Alves levantava-se e todos os dias ia buscar o pãozinho fresquinho na padaria que havia na aldeia, que ficava na estrada principal, cá por baixo.
Saía de casa sempre impecavelmente arranjada, penteada com o seu carrapito, sapatos meio tacão, nunca andava de chinelos, talvez com medo de escorregar, descia a ladeira até á padaria, e tornava a subi-la até casa, o que era um pouco mais difícil.
Em casa na janela da sala, ficava o marido esperando, e olhando a ladeira para ver se a via subir, sempre preocupado com receio que lhe pudesse acontecer alguma coisa, só quando a conseguia ver a meio da ladeira ficava descansado.
Um certo dia o senhor Alves adoeceu, já tinha oitenta e tal anos, um problema de saúde grave levou-o a ser hospitalizado
Ele conseguiu melhorar, voltou para casa, conseguiu ficar mais forte do que a esposa, andava de pé, coisa que ela nunca mais conseguiu, e ele até olhar um pouco por ela, na ausência das filhas .
No mesmo cruzamento da casa dos Alves, havia um estabelecimento de província, café e mercearia onde se vendia de tudo, naquelas lojas onde era possível comprar tudo o que é possível de imaginar. O senhor Alves era lá cliente para algumas poucas coisas que as filhas não compravam, e nesse rol comprava lá as lâminas para se barbear, só cortava ele a barba uma vez por semana, isso dava para que só utilizasse a máquina de barbear de duas lâminas de uma só vez, na próxima já não cortava.
Ele com os seus hábitos de poupança ia juntando as máquinas todas, já utilizadas, dentro de um saco, não sabia que caminho lhes dar, mas fazia-lhe muita confusão, ter de as deitar para o lixo, pois só as tinha utilizado uma só vez.
Certo dia precisava de comprar mais lâminas, pegou no saco das utilizadas e foi á mercearia. Quando lá chegou diz para a dona da loja: “ó vizinha, venho ver se quer fazer um negócio comigo, trago aqui as lâminas todas que você me tem vendido, você não me quer ficar com elas novamente, eu vendo-lhas baratas, você pode vende-las de novo também mais baratas, só serviram uma vez, é uma pena deitá-las fora, assim estas todas podiam dar para uma embalagem nova.”
A vizinha explicou calmamente que não podia fazer tal coisa, se não serviam para ele, também já não podiam servir para outra pessoa, mas foi difícil convencê-lo, e ainda lhe disse, “podiam ser boas ainda para alguém que não tenha uma barba tão rija como a minha, e daria para outra embalagem, assim a reforma não chega para fazer a barba”.
A vizinha da loja achou muita graça à sua ideia, quanto tempo é que o senhor Alves teria andado a pensar em fazer aquele negócio, de grande valor, para um homem quase com noventa anos.
Contudo a vida continuou naquela rua, os Carrapiços morreram, o casal Alves também partiu para a eternidade, primeiro a mulher, depois o Sr. Alves, a tia Arminda, deixou os seus corações com as pessoas, e será recordada durante anos, quando olharem os seus corações irão recordar essa meiguice da tia Arminda.
Por tempo contado, que no tempo foi passando, e a tia Áurea foi soçobrando até que ficou sem forças para tomar conta de si, e as suas noras vinham dar-lhe a comida, depois passaram a dormir lá na casa dela, mais um tempo e a estar sempre noite e dia, uma em cada semana, até que os últimos dias foram chegando.
Um dia uma das noras, a que era muito medrosa, disse a duas vizinhas que tinha medo que ela morresse na sua semana, e ela ali, sozinha com ela, tinha medo de mortos, e não conseguia vesti-la se ela morresse.
As vizinhas ofereceram-se para lhe dar apoio, para as chamar, se algo acontecesse, e assim foi. A tia Áurea morreu mesmo na sua semana, as vizinhas foram chamadas, foram vesti-la, peça por peça de vestuário, após vestida e composta, com todas as roupas da amortalha, já só faltava as meias, foram calçadas e deixadas sem ligas, de propósito, a viagem que ia realizar não lhe fazia cair as meias, ali estava ela quase pronta para a última viagem.
Alheias a tudo isso, andavam por ali brincando umas crianças, dois irmãos pequenos, que viviam com a avó, brincavam alegremente, soltos e á vontade, no meio da rua, com o bisneto da tia Arminda, e com as suas alegrias naturais de crianças felizes.
Dentro da casa da tia Áurea, o drama continuava, ou nem tanto, era natural que uma pessoa de idade avançada, morresse, a tal ordem natural das coisas, e da vida.
Depois de arranjada e deitada na cama, esperam o cangalheiro, colocaram-lhe um lenço atado, do queixo ao cocuruto da cabeça a amarrar, para que a boca não ficasse aberta, só faltava calçar os sapatos, a vizinha mais nova era a primeira vez que vestia uma pessoa, mas gostava de experiências novas, e desafios, ali estava ela a cumprir a sua boa ação, ia-lhe calçar os sapatos.
Os sapatos eram um pouco justos, talvez mesmo apertados, ou talvez e defunta tivesse os pés inchados, o que era certo é que, a vizinha tinha de forçar, carregar, estava difícil entrarem os pés, naqueles sapatos.
Na última tentativa fez toda a força, fazendo entrar o pé no sapato, e foi nesse mesmo instante, que ela embrenhada no seu desempenho, ouviu um grito, não sabia de onde esse grito surgiu, a primeira coisa que fez foi largar os pés da criatura, com um sobressalto, olhou a cara dela, seria ela a queixar-se de dor pelos sapatos apertados?
A sua colega de boa vontade, olhou para ela e riu-se, ela sabia de onde tinha vindo o grito, não era um grito de dor, mas antes um grito de alegria, de uma alegria alheia ao que se passava ali naquela casa, um grito de alegria, de crianças que brincavam felizes na rua, ali mesmo na frente da casa, ali como em outro qualquer lugar do Mundo, a tristeza da morte, pode sempre conviver, com os gritos de alegria de crianças felizes brincando.
Dentro de casa descansava para sempre, das suas quezílias, das suas lutas, a tia Áurea, ao som de UM GRITO DE ALEGRIA NA PASSAGEM DA MORTE.
Um dia uma das noras, a que era muito medrosa, disse a duas vizinhas que tinha medo que ela morresse na sua semana, e ela ali, sozinha com ela, tinha medo de mortos, e não conseguia vesti-la se ela morresse.
As vizinhas ofereceram-se para lhe dar apoio, para as chamar, se algo acontecesse, e assim foi. A tia Áurea morreu mesmo na sua semana, as vizinhas foram chamadas, foram vesti-la, peça por peça de vestuário, após vestida e composta, com todas as roupas da amortalha, já só faltava as meias, foram calçadas e deixadas sem ligas, de propósito, a viagem que ia realizar não lhe fazia cair as meias, ali estava ela quase pronta para a última viagem.
Alheias a tudo isso, andavam por ali brincando umas crianças, dois irmãos pequenos, que viviam com a avó, brincavam alegremente, soltos e á vontade, no meio da rua, com o bisneto da tia Arminda, e com as suas alegrias naturais de crianças felizes.
Dentro da casa da tia Áurea, o drama continuava, ou nem tanto, era natural que uma pessoa de idade avançada, morresse, a tal ordem natural das coisas, e da vida.
Depois de arranjada e deitada na cama, esperam o cangalheiro, colocaram-lhe um lenço atado, do queixo ao cocuruto da cabeça a amarrar, para que a boca não ficasse aberta, só faltava calçar os sapatos, a vizinha mais nova era a primeira vez que vestia uma pessoa, mas gostava de experiências novas, e desafios, ali estava ela a cumprir a sua boa ação, ia-lhe calçar os sapatos.
Os sapatos eram um pouco justos, talvez mesmo apertados, ou talvez e defunta tivesse os pés inchados, o que era certo é que, a vizinha tinha de forçar, carregar, estava difícil entrarem os pés, naqueles sapatos.
Na última tentativa fez toda a força, fazendo entrar o pé no sapato, e foi nesse mesmo instante, que ela embrenhada no seu desempenho, ouviu um grito, não sabia de onde esse grito surgiu, a primeira coisa que fez foi largar os pés da criatura, com um sobressalto, olhou a cara dela, seria ela a queixar-se de dor pelos sapatos apertados?
A sua colega de boa vontade, olhou para ela e riu-se, ela sabia de onde tinha vindo o grito, não era um grito de dor, mas antes um grito de alegria, de uma alegria alheia ao que se passava ali naquela casa, um grito de alegria, de crianças que brincavam felizes na rua, ali mesmo na frente da casa, ali como em outro qualquer lugar do Mundo, a tristeza da morte, pode sempre conviver, com os gritos de alegria de crianças felizes brincando.
Dentro de casa descansava para sempre, das suas quezílias, das suas lutas, a tia Áurea, ao som de UM GRITO DE ALEGRIA NA PASSAGEM DA MORTE.
Lindíssimo texto no Ribatejo profundo.
ResponderEliminarBeijo.
OBRIGADO MARQUES PELA SUA LEITURA!!!
EliminarÉ UM GRANDE PRAZER SABER QUE LEU O MEU TEXTO, RECONHEÇO QUE É UM POUCO EXTENSO PARA UMA LEITURA DE PASSAGEM.
ATÉ SEMPRE E MAIS UMA VEZ AGRADECIDA!!!
1 BEIJO LÍDIA