Nos anos cinquenta,
ainda se fazia a extração de carvão mineral das minas de Rio Maior, assim a linha
do comboio p
or onde eram transportados os vagões de carvão, desde a mina da sua
extração - até à Linha do Norte, aos caminhos de ferro que ficam no Vale de
Santarém, ou melhor, num cais de embarque perto da Ponte da Asseca, - passava ali na Ponte do Celeiro, ao início e fim do dia, e aí vivia uma
família que eram os guardas da linha, que levantavam a bandeirinha na passagem
do comboio.
O comboio fazia-se anunciar com um estrondoso e sonoro apito
rouco, que ecoava pelos vales, chegando até aos mais altos cabeços, e toda a
gente o ouvia.
Havia ali um costume entre as mulheres da aldeia, algumas iam
para a linha apanhar as bolas do carvão, que caiam dos vagões pelo caminho,
ficando pouco a pouco espalhadas ao longo da linha, era para se aquecerem no
Inverno, e para fazer a comida, por vezes até levavam as crianças, que iam de
boa vontade, não havia a exploração infantil, havia sim, o incutir das
responsabilidades da vida, das suas necessidades, e como se dizia na gíria
popular: o trabalho do menino é pouco, mas quem o perde é louco.
Assim pensando e agindo, lá ia um grupo de mulheres algumas crianças,
umas sacas debaixo do braço, e um sachinho para descavar na terra, algumas
bolas que se iam enterrando, pouco a pouco, iam juntando um talego que pudessem
carregar na cabeça de volta até casa, já que aquele carvão era bem mais pesado
do que o carvão de madeira ardida.
Quando se ouvia o comboio todo o grupo se afastava da linha,
não fosse o diabo tecê-las, depois conseguido o objetivo do grupo lá voltavam a
subir até ao cabeço de Almodolim, local onde morava aquele grupo de apanhadoras
de carvão vegetal, uma das suas fontes de energia, para algumas pessoas fazerem a comida ou porem a arder na braseira.
Para a braseira qualquer pessoa saberia colocar e acender, e
pensarão agora, “mas esse carvão é tóxico”, seria, na verdade, mas as casas na aldeia nos anos cinquenta, não
eram forradas, eram telha vã como se dizia, se houvesse numa casa de família
uma ou duas casas forradas a madeira, seria só o quarto, ou a casa de fora como
se dizia, e isso eram divisões onde só se ia para se deitarem ou passarem, uma
vez por dia, as braseiras ficavam pelas cozinhas, onde se fazia o serão.
Para fazer a comida,
tinham inventado um género de fogão muito próprio que nunca vi em outra
utilização, seria por exemplo uma lata de dez ou quinze litros, preenchida com
barro por dentro, todo na sua volta, deixando um largo buraco no meio, e até ao
cimo da lata, com uma abertura lateral em baixo, tipo uma boca de forno.
Era por essa boca que se acendia o carvão, e sairiam as
cinzas, carvão esse, que era colocado dentro do espaço redondo no meio, uma vez
já a arder, e em cima do carvão incandescente, que se via a arder na boca da
lata, ou do fogareiro de carvão como lhe chamavam, colocava-se a panela para
cozinhar a sopa, a tomatada, as couves com batatas e bacalhau, se houvesse, ou
até o café de mistura fervido na cafeteira, e acompanhante, ou base de qualquer
pequeno almoço.
Este era um comboio com história, para além do minério tem
ainda algo mais para acrescentar, não tão interessante quanto a apanha do
carvão que servia como um bem de ajuda familiar, mas outra ligação a esta
aldeia ficou registada por largos anos, bem menos interessante.
Uma das residentes naturais da Ponte do Celeiro era a tia
Helena, uma velhinha já muito curvadinha, agarrada a um pauzinho, que a acompanhava
sempre, da casa onde vivia com o filho e mais familiares chegados, na difícil vida
dos anos cinquenta, os velhinhos não tinham centros de dia, não tinham lares de
idosos, e cada um vivia como podia com o pouco que todas as famílias tinham.
A tia Helena gostava ainda de cuidar da horta da família, e
enquanto podia andar, ainda que muitas já fossem as suas dificuldades, não
deixava de ir, cultivar, regar, arrancar ervas daninhas, e até apanhar os
legumes que dentro das suas possibilidades, levaria até casa.
Era assim regularmente e era assim que lá passava uma grande
parte do seu dia, fazendo com as suas poucas posses, lentamente, o que seria
preciso para ter onde apanhar as suas verduras, a grande base para o seu
sustento, lembrando ainda que, na época não havia reformas nem subsídios, nem
ajudas alimentares para famílias carenciadas, e nas aldeias muitas pessoas
viviam sem dinheiro, comendo apenas o que a terra criava.
Talvez por isso mesmo, talvez porque já era difícil carregar
o fardo pesado dos anos, para a sua estrutura física, talvez porque já
precisava mais de ter quem olhasse e cuidasse de si própria, mais ainda, do que
ela já sem forças, ter de cuidar ainda dos outros, certo é que, a tia Helena
encontrou uma solução para todos os males da vida.
Possivelmente, seria uma situação já muito pensada por ela,
a solução estava à vista, e era fácil para ela, de a concretizar.
Num desses dia em que saiu de casa para a horta, nada faria
prever o que lhe ia na cabeça, tudo estaria certo, o caminho para a horta, a
conversa com quem se cruzou pelo caminho, até o seu trabalho normal da rega da horta estava perfeito, mas a hora estava a chegar, o comboio ia passar, viria
carregado, de Rio Maior para a Ponte de Asseca, como de costume.
A tia Helena não tinha relógio, mas sabia pela altura do sol,
quando as sombras iam chegando no sítio mais ou menos certo, comandadas pelo
sol - eram horas do comboio ir chegando.
Ela estaria atenta, estava já tudo programado na sua cabeça,
os seus olhos cansados já teriam olhado as sombras que avançavam, tantas vezes nessa
tarde, ao longe, ecoando pelos vales entre montes sobranceiros, alguém ouviria
o comboio, a tia Helena também o ouviu, desceu até à linha, o bater nos carris,
mesmo na sua pouca velocidade, já diria que estava perto.
Na saída de uma curva, o comboio chiou, travou, tentou parar,
mas não conseguiu no tempo certo, na distância precisa e necessária, a tia
Helena estava lá, deitada, atravessando-se como se fosse uma chulipa, mas na versão
contrária, não suportava o carril, era o carril que apoiava o seu pescoço, tudo
terminou ali.
PAZ À TIA HELENA!!!
A vida tem de tudo, o lado simples e romântico, também o
duro, triste ou macabro, mas é vida, e a vida tem morte.